segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Anne of Amy dead heart?



morres excepcionalmente
o rio enganoso da felicidade
não é mesmo um curso viável
...guiada pela senhora destruição
rude egoísta o olhar negro
autêntica inimiga de deus
– de todas as farsas –
morres agora pelo excesso
o excesso foi um modo de vida
teu perde-e-ganha tua anarquia
alma insone pele acetinada
não perdias como chatterton
para a sátira improvisada do dia
a loucura também tem seus êxtasis
prêmios & récordes secretos
virada ao avesso levitas ao redor do fogo
sem qualquer possibilidade de ajuda
sem música sem meteoros
                                               Juliete Oliveira

terça-feira, 5 de julho de 2011


"E não sou mulher?" ("Ain't I A Woman?")
Discurso feito de improviso pela ex-escrava Sojourner Truth. Pouco depois de conquistar a liberdade em 1827, tornou-se uma conhecida oradora abolicionista. O discurso foi proferido na Women's Convention em Akron, Ohio, em 1851.
Trecho:
“Bem, crianças, onde há muita confusão deve haver algo de errado. Penso que entre os negros do Sul e as mulheres do Norte, todos falando sobre direitos, os homens brancos vão muito em breve ficar num aperto. Mas sobre o que todos aqui estão falando?
Aquele homem ali diz que as mulheres precisam ser ajudadas a entrar em carruagens, e erguidas para passar sobre valas e ter os melhores lugares em todas as partes. Ninguém nunca me ajudou a entrar em carruagens, a passar por cima de poças de lama ou me deu qualquer bom lugar! E não sou mulher? Olhem pra mim! Olhem pro meu braço! Tenho arado e plantado, e juntado em celeiros, e nenhum homem poderia me liderar! E não sou uma mulher? Posso trabalhar tanto quanto e comer tanto quanto um homem - quando consigo o que comer - e aguentar o chicote também! E não sou uma mulher? Dei à luz treze filhos, e vi a grande maioria ser vendida para a escravidão, e quando eu chorei com minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus me ouviu! E não sou mulher?...”

Sirvo-me do discurso ainda atual e coerrente de Sojourner para pensar os últimos números da violência contra a mulher no estado mais populoso do Brasil, São Paulo. Com base nas estatísticas de 11 fóruns regionais, uma pesquisa inédita mapeou pela primeira vez os índices de violência doméstica contra a mulher na cidade. O mapeamento revela a explosão de registros como se fosse o avanço de serviços especializados. Um exemplo é o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, primeira vara especializada criada há dois anos, no Fórum da Barra Funda. Quando o serviço iniciou, eram 49 casos. A vara fechou 2010 com 2.522 inquéritos e processos em andamento.

Contudo, nada disso cala fundo no imaginário coletivo, são apenas dados estatísticos, deixam de ser avaliados como realidade, e só temos a nos servir a imagem-televisão, a imagem-vídeo, a numérica, a síntese, imagens sem negativo e, portanto também sem negatividade ou referência. Elas são virtuais – é Jean Baudrillard a nos dizer –, e o virtual é o que termina com toda negatividade, logo com toda referência à história ou ao acontecimento.

Não é a vida real, é uma telenovela sempre a apresentar novas cenas de uma mesma desgraça cotidiana. Um dia é Aline, no outro, Alice, Eloá, Eliza, Mônica, Sabrina, Vera, Vanessa, tantos nomes - se se tratasse só de nomes. Trata-se, antes, de um mesmo destino torpe: assassinadas, agredidas, subjugadas. A cada 2 minutos, 5 mulheres são espancadas no Brasil. A sociedade sequestra a si mesma ao manipular nossas mazelas na telinha, sequestra gerações inteiras que absorvem avidamente essa ficção/real e essa ficção travestida de informação – e acaba que temos todos a mesma responsabilidade que aqueles que a fomentam. Ou melhor, não há responsabilidade em parte algum. A questão da responsabilidade nem mesmo pode ser colocada.
Mas talvez nem tudo esteja perdido. A Fundação Perseu Abramo, num trabalho divulgado recentemente, aponta frágeis alterações numéricas para as diferenças sociais entre homens e mulheres no Brasil, a exemplo do trabalho “Percepção de ser mulher: machismo e feminismo”, entre os anos de 2000 e 2010, em que consta: Tanto mulheres como homens apontam o espaço público como locus das “principais diferenças entre homens e mulheres nos dias de hoje”, ressaltando as desigualdades no mercado de trabalho (de oportunidades e salários) e o machismo socialmente disseminado. Apenas uma em cada cinco mulheres (20%) e cerca de um em cada quatro homens (27%) não vê diferenças entre homens e mulheres.

Contudo, o dia a dia é perverso. As mulheres experimentam toda a sorte de preconceitos. Se decide não casar, é solteirona, encalhada; se casa e tem filhos não pode passar de dois, quando ultrapassa essa “cota” é vista como irresponsável, desajustada; se trabalha fora de casa é negligente com os filhos. No cenário profissional em uma disputa entre homens e mulheres por cargos, funções ou promoções a mulher sempre perde, ela desempenha as mesmas funções, quase sempre tendo que agregar outras, ainda assim ganha menos. Reza, reza, faz tabelinha, e por vezes nem pode gozar de tanta preocupação - tudo para não engravidar, uma vez que a licença maternidade é extremamente mal vista nas empresas. 

Sojourner Truth, em sua simplicidade tinha razão, por vezes é melhor fingir não ser mulher, ou mesmo, se transvestir em pedra!

sábado, 21 de fevereiro de 2009

GALÁXIA, de Haroldo de Campos


e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso
e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa
não é a viagem mas o começo da por isso meço por isso começo escrever
mil páginas escrever milumapáginas para acabar com a escritura para
começar com a escritura para acabarcomeçar com a escritura por isso
recomeço por isso arremeço por isso teço escrever sobre escrever é
o futuro do escrever sobrescrevo sobrescravo em milumanoites miluma-
páginas ou uma página em uma noite que é o mesmo noites e páginas
mesmam ensimesmam onde o fim é o comêço onde escrever sobre o escrever
é não escrever sobre não escrever e por isso começo descomeço pelo
descomêço desconheço e me teço um livro onde tudo seja fortuito e
forçoso um livro onde tudo seja não esteja um umbigodomundolivro
um umbigodolivromundo um livro de viagem onde a viagem seja o livro
o ser do livro é a viagem por isso começo pois a viagem é o comêço
e volto e revolto pois na volta recomeço reconheço remeço um livro
é o conteúdo do livro e cada página de um livro é o conteúdo do livro
e cada linha de uma página e cada palavra de uma linha é o conteúdo
da palavra da linha da página do livro um livro ensaia o livro
todo livro é um livro de ensaio de ensaios do livro por isso o fim-
comêço começa e fina recomeça e refina e se afina o fim no funil do
comêço afunila o comêço no fuzil do fim no fim do fim recomeça o
recomêço refina o refino do fum e onde fina começa e se apressa e
regressa e retece há milumaestórias na mínima unha de estória por
isso não conto por isso não canto por isso a nãoestória me desconta
ou me descanta o avesso da estória que pode ser escória que pode
ser cárie que pode ser estória tudo depende da hora tudo depende
da glória tudo depende de embora e nada e néris e reles e nemnada
de nada e nures de néris de reles de ralo de raro e nacos de necas
e nanjas de nullus e nures de nenhures e nesgas de nulla res e
nenhumzinho de nemnada nunca pode ser tudo pode ser todo pode ser total
tudossomado todo somassuma de tudo suma somatória do assomo do assombro
e aqui me meço e começo e me projeto eco do comêço eco do eco de um
começo em eco no soco de um comêço em eco no oco de um soco
no osso e aqui ou além ou aquém ou láacolá ou em toda parte ou em
nenhuma parte ou mais além ou menos aquém ou mais adiante ou menos atrás
ou avante ou paravante ou à ré ou a raso ou a rés começo re começo
rés começo raso começo que a unha-de-fome da estória não me come
não me consome não me doma não me redoma pois no osso do comêço só
conheço o osso o osso buço do comêço a bossa do comêço onde é viagem
onde a viagem é maravilha de tornaviagem é tornassol viagem de maravilha
onde a migalha a maravilha a apara é maravilha é vanilla é vigília
é cintila de centelha é favilha de fábula é lumínula de nada e descanto
a fábula e desconto as fadas e conto as favas pois começo a fala

(Trecho do poema Galáxia, Haroldo de Campos, Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século, Objetiva.)